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  • Isabel Sangali

CNJ - LGPD - dados pessoais - polêmica



CNJ: Consulta – Expedição de Certidão Notarial – Dados Pessoais – LGPD – Interpretação sistêmica que busque priorizar a norma constitucional, como fundamento a dignidade da pessoa humana – Tema sensível que gera interpretações diversas – Necessidade de regulamentação por parte da Corregedoria Nacional de Justiça.

Processo nº 0703690-47.2021.8.07.0015 – DÚVIDA – A: ALLAN NUNES GUERRA. Adv(s).: Nao Consta Advogado. R: NÃO HÁ. Adv(s).: Não Consta Advogado. T: MINISTERIO PUBLICO DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITORIOS. Adv(s).: Nao Consta Advogado. Poder Judiciário da União TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS VREGPUBDF Vara de Registros Públicos do DF Número do processo: 0703690-47.2021.8.07.0015 Classe judicial: DÚVIDA (100) REQUERENTE: ALLAN NUNES GUERRA

SENTENÇA Trata-se de “consulta” formulada pelo Oficial do 4º OFÍCIO DE NOTAS, PROTESTO, REGISTRO CIVIL, TÍTULOS E DOCUMENTOS E PESSOAS JURÍDICAS DE BRAZLÂNDIA – DF, quanto ao procedimento de emissão de certidão de escritura pública de compra e venda por ele adotado. Informa que na data de 29 de janeiro de 2021 foi encaminhado por correspondente bancário vinculado ao Banco de Brasília – BRB requerimento de lavratura de escritura de compra e venda de imóvel urbano, com financiamento pelo BRB e alienação fiduciária do imóvel em garantia do financiamento, a qual foi lavrada no Livro 509, folhas 98 a 120, constando como vendedora RVA Construções e Incorporações S.A, F. N. B. e sua mulher F. A. F. B. como compradores e devedores-fiduciantes e, como credor-fiduciário, o Banco de Brasília – BRB. Narra que, na data de 05 de maio de 2021, o jornalista B. L. P., do Jornal O E. S. P., pediu-lhe uma certidão da escritura, sendo expedida uma certidão hachurada nos campos relativos ao CNPJ, CPF, RG, endereço e composição de renda das partes (esse só dos compradores), certificando que os campos estavam hachurados por entender que eram protegidos por sigilo bancário e fiscal. Afirma que o jornalista não se conformou com a ocultação dos dados o que ensejou na presente consulta. Alega, ainda, que seguiu o disposto no § 3º do artigo 7º da Lei no 13.709/2018 e artigos 1° e 10 da Lei Complementar no 105/2001, além de a escritura pública conter todos os dados essenciais dos negócios jurídicos, a saber: partes, objeto, descrição do imóvel, preço, forma de pagamento, taxa de juros, constituição de garantia, forma de execução da garantia. Invoca, ainda, a Lei Geral de Proteção de Dados e sua recente entrada em vigor, requerendo orientação quanto à conduta que deva ser adotada pelo tabelionato de notas para a expedição de certidões com a omissão ou não de dados pessoais dos envolvidos a terceiros estranhos ao negócio. O Ministério Público manifestou-se no sentido de que nenhum dado deve ser omitido das certidões expedidas pelos tabelionatos de notas, oficiando, assim, para que o caso seja encaminhado à Corregedoria de Justiça do DF e Territórios para apuração de eventual infração cometida pelo tabelião, bem como para que seja oficiado à Corregedoria para que se digne a orientar os notários e registradores quanto à aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais sobre os atos por eles praticados (ID 88818292). Em face de notícias que circularam na mídia sobre a investigação da conduta do tabelião pelas Corregedorias de Justiça do TJDFT e do CNJ, foi determinada a consulta aos referidos órgãos sobre a existência de procedimentos em curso, tendo a Corregedoria do TJDFT informado a existência do Processo Administrativo no 0004630/2021 (ID 94321815) e o CNJ informado quanto à inexistência de qualquer processo (ID 95596124 – Pág. 2). É o relatório. Decido. No caso, a conduta do consulente em disponibilizar certidão de escritura pública, com trechos cobertos por tarja, ganhou especial destaque em diversos sites, sendo que alguns destes noticiaram a representação do Deputado Federal I. V. junto ao Conselho Nacional de Justiça e Corregedoria do Tribunal de Justiça do Distrito Federal1. A Lei n. 11.697/08, que dispõe sobre a organização judiciária do Distrito Federal, atribui ao Corregedor a instauração de sindicância e processo administrativo disciplinar para apurar infrações praticadas pelos notários, oficiais de registro e afins e seus prepostos, aplicando as penas cabíveis, exceto a perda de delegação, bem como exercer a fiscalização dos atos notariais e de registro, zelando para que sejam prestados com rapidez, qualidade satisfatória e de modo eficiente (art. 12, incs. II e III). A mesma lei confere ao Juízo da Vara de Registros Públicos as seguintes competências “I – inspecionar os serviços notariais e de registro, velando pela observância das prescrições legais e normativas, e representar ao Corregedor quando for o caso de aplicação de penalidades disciplinares; II – baixar atos normativos relacionados à execução dos serviços notariais e de registro, ressalvada a competência do Corregedor; III – (…) IV – fixar orientação no tocante à escrituração de livros, execução e desenvolvimento dos serviços, segundo normas estabelecidas pela Corregedoria-Geral da Justiça.” Portanto, até mesmo para não invadir a esfera de atribuição da Corregedoria, aterme-ei aos limites da consulta. No particular, vale lembrar que, noutras oportunidades, nas quais fui provocado por tabeliães e registradores a me manifestar sobre um determinado ato a ser praticado, deixei assentado que o Juízo da Vara de Registros Públicos não é órgão consultivo, gozando aqueles profissionais de “independência no exercício de suas atribuições” (art. 28 da Lei n. 8.935/94). Aqui, diferentemente, o ato já foi praticado e, como se demonstrará, há fundadas dúvidas que cercam o tema, que, além de recente, orbita praticamente no âmbito teórico, não havendo qualquer decisão ou regulamento sobre a matéria no âmbito do TJDFT ou do Conselho Nacional de Justiça. Com efeito, o Provimento Geral da Corregedoria aplicado aos Serviços Notariais e Registrais, que estabelece “normas e instruções destinadas à uniformização, esclarecimento e orientação quanto aos dispositivos legais aplicáveis aos serviços notariais e de registro do Distrito Federal”, é silente quanto ao tema. A Lei de Registros Públicos, por sua vez, dispõe em seu art. 17 que “Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido.” Portanto, a publicidade dos atos notariais é a regra. Entretanto, a própria Lei de Registros Públicos mitiga o princípio da publicidade, ressalvando, em seu art. 18, as hipóteses dos arts. 45 (legitimação de filhos), 57, § 7º (proteção a testemunhas), e 95, parágrafo único (legitimação adotiva). A mesma Lei de Registros Públicos impõe segredo de justiça nos casos do arts. 57, § 6o, e 69, § 1º (dispensa de proclamas fundada em crime contra os costumes), sendo que o segredo a que se refere o art. 57, § 6º, segundo lição de Walter Ceneviva, “destina-se a preservar a condição de pessoas que se apresentam como casadas e que teriam de tornar pública sua condição se a lei fosse omissa (…)” (Lei de Registros Públicos Comentada, Saraiva, 19a ed., pág. 157). A rigor, estas seriam as ressalvas quanto à publicidade. Sobre o tema, Luiz Guilherme Loureiro já trazia a seguinte e importante contribuição, in Registros Públicos, Teoria e Prática, JusPODIVM, 8º ed., págs. 109/110: “De acordo com uma posição doutrinária, o próprio nome ‘escritura pública’ e os efeitos probatórios erga omnes que decorrem da fé pública que lhes recobre, evidenciam que estes documentos são públicos, isto é, acessíveis por qualquer pessoa. Mas, a nosso ver, nossa lei peca ao não exigir a justificativa de interesse legítimo e ao não prever exceções ao princípio da publicidade, como, por exemplo, a título de preservação do direito fundamental à intimidade e privacidade.” Em sua 11ª edição, publicada neste ano de 2021, LOUREIRO transcreveu a mesma lição acima (pág. 116), sugerindo que nenhuma alteração significativa trouxe a novel lei em relação à publicidade dos atos notariais. No entanto, mais adiante, ao comentar a LGPD, LOUREIRO alerta que, na verdade, a referida lei “implica uma série de medidas a serem adotadas também pelos notários e registradores, como agentes de tratamento de dados pessoais.” (op.cit., pág. 135) Com efeito, de acordo com o art. 23, § 4º, da LGPD, “Os serviços notariais e de registro exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, terão o mesmo tratamento dispensado às pessoas jurídicas referidas no caput deste artigo, nos termos da Lei”, ou seja, “O tratamento de dados pessoais (…) deverá ser realizado para o atendimento de sua finalidade pública, na persecução do interesse público, com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público”. Já o § 3º do art. 7º da LGPD, invocado pelo consulente para justificar sua conduta, dispõe que “O tratamento de dados pessoais cujo acesso é público deve considerar a finalidade, a boa-fé e o interesse público que justificaram sua disponibilização.” Para LOUREIRO: “A nova Lei qualifica os dados pessoais como direito fundamental da pessoa humana. (…) a Lei em comento se utiliza de técnicas legislativas, como o uso de normas abertas, princípio, ficções legais e definições técnicas mais amplas. Destarte, a aplicação de suas normas não se dá pela simples aplicação da subsunção. Nela não se prevê, por exemplo, a medida concreta a ser adotada para a tutela dos dados ou a conduta a ser seguida em cada hipótese. Seus destinatários e intérpretes devem partir da finalidade legal – a proteção dos dados pessoais – para então adotar a medida técnica e organizativa adequada aplicável à situação individualizada. Em outras palavras, a Lei sobre a proteção de dados não estabelece um modelo standard, típico ou predefinido para ser utilizado pelos titulares ou responsáveis por bancos de dados a fim de evitar o uso ilícito de dados pessoais. A eficácia da proteção destas informações depende de situações diversas como, por exemplo, a natureza do banco de dados, sua finalidade e amplitude, a tecnologia adotada, dentre outras variáveis. A norma se limita a explicitar que as medidas e ações a serem concretizadas pelos destinatários são de duas índoles: técnica e organizativa. (…) Está sujeita ao âmbito de aplicação da Lei 13.709/2018 qualquer operação de tratamento realizada por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado para fins profissionais ou funcionais, independentemente do meio e do país sede da sociedade ou da localização do banco de dados; desde que essa atividade de coleta ou tratamento de dados pessoais tenha sido realizada no território nacional ou tenha por fim reforçar a oferta ou o fornecimento de bens ou serviço em nosso país. Assim, quase todos os empresários individuais e sociedades empresárias (ou simples) e também os órgãos estatais terão que se adaptar às novas regras estabelecidas pela Lei n. 13.709/2018, por ocasião de sua entrada em vigor em 14 de agosto de 2020, pois a maior parte deles recolhe e trata dados pessoais de seus clientes, seja por meio eletrônico ou físico, pouco importa o seu porte ou o tipo de atividade. Aí se incluem os notários e registradores, como responsáveis pela adoção de medidas aptas à proteção dos respectivos bancos de dados pessoais de seus clientes ou usuários de serviço (…).” (op.cit., págs.137/138) No caso, a certidão da escritura pública foi disponibilizada ao jornalista com os nomes das partes, do objeto e do preço (em princípio, compatível) e a forma de pagamento, tendo sido expedida a Declaração de Operações Imobiliárias – DOI (ID 85739005 – Pág. 2), bem como comunicado o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF (ID 85739005 – Pág. 3), nada sugerindo a prática de “lavagem” ou ocultação de bens. Ademais, a omissão dos dados na certidão não causou nenhum prejuízo à informação que se pretendia obter com a expedição da certidão, restando resguardado o interesse público e a finalidade pública do direito à informação, além de ter atingido o objetivo jornalístico de se dar publicidade à compra do imóvel por pessoa politicamente exposta. Vê-se, pois, que a LRP e a LGPD trazem normas antinômicas quanto à publicidade (dos atos notariais) e, para dirimi-las, deve o operador do Direito valer-se da interpretação sistemática. E dando azo a norma à dupla interpretação, deve-se optar por aquela que priorize o significado que melhor se amolde com a norma constitucional que, no caso, considera como fundamento da República a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Ora, a composição da renda constitui dado pessoal que, em princípio, só interessa ao credor fiduciário e aos órgãos de controle e de inteligência financeira e, se o próprio estatuto dos notários e registradores (Lei n. 8.935/94) garante àqueles profissionais independência no exercício de suas atribuições (art. 28), legítima qualquer interpretação que beire o razoável, cabendo ao eventual interessado/prejudicado socorrer-se a quem de direito, caso não se conforme com a solução dada pelo notário ou registrador. Conforme dito alhures, trata-se de questão sensível que dá azo a interpretações diversas quanto ao procedimento a ser adotado, urgindo norma regulamentadora por parte da Corregedoria de Justiça. Intime-se o consulente. Encaminhe-se cópia desta à Corregedoria para, s.m.j., regulamentar a questão.


BRASÍLIA/DF, Data e Hora da Assinatura Digital. RICARDO NORIO DAITOKU, Juiz de Direito


Blog do 26º Tab. SP

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